O Batismo de uma Canoa Havaiana

As raízes primitivas da cultura polinésia eram passadas de geração em geração de forma oral ou por meio de cânticos que evocavam os antepassados do povo, o culto aos diversos deuses da natureza e a vida extremamente vinculada ao mar e ao cultivo da terra. Canoas faziam parte do cotidiano não só como meio de subsistência para a pesca, mas também como forma de vida. Um número incontável de canoas polinésias devem ter singrado o Oceano Pacífico de Oeste a Leste e de Sul a Norte transportando não só bravos guerreiros em busca de novas terras e novos deuses, mas também os costumes e a cultura destes povos. Tanto carregaram em suas enormes canoas estes primitivos remadores e homens do mar, que podemos até hoje conhecer suas bagagens. O que levavam não era apenas porcos, galinhas, fruta-pão e suas famílias. Carregavam a bordo a pré-história dos povos austronésios - os primeiros seres humanos navegantes e grandes conhecedores das estrelas - que em uma época remota e difícil de mensurar começaram a se aventurar em suas embarcações a remo e à vela, saindo da Oceania com destino às ilhas do Oceano Pacífico. Bem antes das primeiras grandes e conhecidas navegações europeias, estes povos se lançaram ao mar nas suas estreitas canoas que tinham como principal característica um estabilizador lateral, que hoje o mundo conhece como outrigger.

Em uma cuia que deve ser de material natural, misturamos água do mar com água de cachoeira. A água do mar representa o novo universo da canoa, onde ela vai navegar, e a água doce representa a floresta onde as antigas canoas de madeira eram concebidas. 
Como parte da cultura e dos costumes destes antigos povos da polinésia, depois de entalhadas em um só tronco de árvore as canoas eram batizadas à beira do mar em rituais sagrados que lhe davam uma alma - que os polinésios chamam de mana - e assim trariam mais proteção e sucesso aos seus viajantes. Batizar uma canoa ou dar nome a qualquer tipo de embarcação é algo comum não só na Polinésia como em todo o universo náutico. Em qualquer lugar do mundo onde existem homens no mar, existem barcos com nomes e identidades próprias. Dar nome a um barco significa dar vida e personalidade ao meio de transporte que por muitos anos na história da humanidade foi o principal responsável por permitir ao homem desbravar o desconhecido, chegar mais longe do que seus olhos podiam enxergar e descobrir o seu próprio mundo. Foi assim há muitos séculos, mas ainda hoje continua igual este sentimento de respeito aos barcos que nos levam mares e rios a fora.

Por volta dos anos 1400, quando se deram os primeiros contatos do homem branco ocidental com os nativos de pele dourada das ilhas do pacífico, suas histórias passaram a ser registradas em gravuras, manuscritos e livros. A literatura moderna sobre os antigos ritos polinésios apresenta diferentes descrições de rituais de batismo de canoas. Foi resgatando fragmentos deste misterioso assunto e deixando aflorar de forma natural o sentimento de respeito pelas canoas, que batizamos as duas OC6 Alli Nui e Nalo Wi’wiki com uma cerimônia simples na Praia de Itaipu, Niterói, RJ. Tradicionalmente os batismos são celebrados pelo kahuna, o sacerdote ou guia espiritual de uma tribo, que era também responsável por escolher a árvore que seria abatida para a construção da canoa. Mas com boas e verdadeiras intenções de manter viva a cultura milenar deste esporte, qualquer remador pode batizar sua canoa.

O nome havaiano para a cerimônia de batismo é lolo ana i ka wa'a, uma frase que pode ser aproximadamente traduzida como "dar cérebro a uma canoa". O batismo da Alii Nui e da Nalo Wi’wiki foi especial. Em uma noite estrelada e ao som das ondas fizemos uma grande roda abraçando as duas canoas. Alli Nui é o nome dos grandes reis e rainhas de linhagem pura entre os havaianos, ou seja, filho de havaiano, neto de havaiano, bisneto, tataraneto e por aí vai... Ela é a mais nova canoa do Itaipu Surf Hoe. Com seu batismo e a simbologia de seu nome, a nova canoa representa uma nova fase de conquistas e a manutenção permanente da divulgação da cultura do esporte pelos seus remadores. Já a Nalo Wi’wiki ganhou um mana que seu nome em havaiano traduz: vagalume. Uma canoa que foi concebida para remadas noturnas na enseada de Botafogo, a serem guiadas sob o olhar cuidadoso e guerreiro da minha grande amiga Letícia Lana. O papel da Nalo será iluminar de forma alegre a vida e as remadas de quem nela navegar.

O processo de mistura das águas do mar e de cachoeira e as canoas ornamentadas com leis havaianos e plantas da região. Preso a popa da canoa, um ramo de folhas naturais colhidas em uma árvore da Praia de Itaipu. Este ramo deve permanecer na canoa mesmo quando o ritual de batsimo de encerrar, e ali deve ficar até que se desprenda naturalmente. 
Eu e Letícia misturando a água de cachoeira que ela pegou nas Paineiras com a água do mar de Itaipu.
Faz-se uma roda circulando as canoas a serem batizadas e cada participante, um a um, pega a cuia com a mistura de águas e derrama um pouco do líquido e de suas boas intenções sobre a canoa. Neste momento, cada um pode falar uma palavra ou frase bonita que irá se integrar ao mana da nova canoa. 
Todos os participantes da cerimônia contribuem com a integração do mana da nova canoa. 
Todos os participantes da cerimônia contribuem com a integração do mana da nova canoa. 
Todos os participantes da cerimônia contribuem com a integração do mana da nova canoa. 
Para jogar a mistura de águas sobra a canoa, podemos utilzar uma concha ou o ramo de folhas naturais que será fixado na popa da embarcação. Para esta cerimônia, usamos uma cuia com mosaicos de madeira da África do Sul e uma grande concha do mar do Caribe. Energia cosmopolita para as canoas Alii Nui e Nalo. 
A querida Sylvia Salustti, que emocionou a todos com sua poderosa voz em um canto lírico durante a cerimônia. Entre uma oração havaiana e outra, ela nos presenteou com um Ave Maria deslumbrantemente hipnótico, que arrancou lágrimas da galera. 

Os remos utilizados para a remada do batismo devem ser todo de madeira.
Na foto, um remador usa a grande concha para derramar um pouco da mistura de águas e muito de de suas boas intenções sobre a nova canoa. 

A energia keiki das crianças, levando um mana de pureza para as novas canoas. 

Livre de tabus e de vergonhas, homens e mulheres, adultos, jovens e crianças se enfeitam ao estilo polinésio, com leis havaianos e coroa de flores na cabeça, para celebrar com estilo o ritual de batismo que preserva  o espírito wa'a da cultura do esporte (wa'a = canoa, em havaiano).
Roda em volta das canoas batizadas. 

A cerimônia é finalizada com todos os participantes levantando a canoa bem alto para levá-la ao mar para a primeira remada com o mana incorporado à canoa, Para nós, remadores de canoa havaiana, manter vivos estes rituais é um sinal de respeito às raízes desta cultura, uma forma de manter presente os costumes milenares desta prática que avançou oceanos e continentes para chegar ao Oceano Atlântico na forma de esporte.

ALOHA E ATÉ A PRÓXIMA POSTAGEM!
Luiza Perin
Niterói,16 de agosto de 2015






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